quarta-feira, 1 de junho de 2011

Mesa temática

Abertura da Mesa Temática:
Ensino e Aprendizagem: Apreciação

Regina Machado


Apreciação, fruição, leitura da imagem, são termos que têm sido muito utilizados na literatura e na ação pedagógica contemporâneas, dentro da área do Ensino da Arte, referindo-se de diferentes modos ao que podemos chamar genericamente de experiência estética. É importante olharmos para o momento atual do Ensino da Arte no Brasil, buscando compreender o sentido que este conceito parece enunciar hoje, dentro de uma perspectiva histórica: tal compreensão pode ser valiosa para fundamentar a função da experiência estética tanto na formação de nossos alunos, quanto na nossa própria formação enquanto educadores.

Porque se fala tanto de apreciação neste momento? A que necessidade histórica respondem as inúmeras formulações dentro deste tema? Que tendência se configura e que perspectivas de pesquisa, de avanço conceitual esta tendência descortina para nossa área?

O que nós estamos testemunhando e possivelmente ajudando a construir e a expandir é uma ação pedagógica e uma reflexão vinculadas a um marco epistemológico muito importante na nossa história, cuja configuração explícita se encontra na Proposta Triangular enunciada por Ana Mae Barbosa, em consonância com uma tendência mais geral, presente também em outras partes do mundo.

Desde a época dos estudos pioneiros sobre arte infantil no campo das artes visuais, como os de Luquet, por exemplo, passando por vários outros autores no nosso século, muito se tem escrito e discutido sobre a importância do fazer artístico na formação das crianças. As mais diversas formulações concordam em um ponto: a arte é um instrumento poderoso e fundamental na educação do ser humano e contribui de maneira peculiar para sua atuação significativa e pessoal dentro da sociedade. Atuação de um indivíduo preparado tanto racional quanto sensivelmente para fazer frente, de maneira criadora, às diversas solicitações de seu ambiente cultural.

A tendência da Livre Expressão concretizou estes ideais numa proposta metodológica que basicamente priorizava o processo de criação infantil como único responsável pela aprendizagem artística. Ao longo do tempo, muitas vezes, o "desenvolvimento da capacidade criadora" enunciado nos planejamentos escolares, acabava sendo, na prática, a proposição de uma sequência de técnicas aprendidas nos receituários oficiais, resultando numa canhestra "Arte escolar": feijões, macarrões, sucata, anilina com lápis de cera, e mais uma infinidade de "achados" que até hoje povoam a boa intenção de muitos professores, compunham um universo desconexo, que pouco tem a ver com o universo da produção artística, privando os alunos das dimensões sociais, culturais e estéticas que a envolvem. Mais ainda, privando os professores de uma compreensão do objeto de sua área, que possa sedimentar sua consciência da importância e abrangência da Arte como fonte de conhecimento e a consequente justificativa de sua pertinência dentro do currículo escolar.

Tal compreensão situa antes de mais nada a Arte como fenômeno da cultura humana, cumprindo uma função que varia e difere de um grupo cultural para outro. Além disso, a produção artística tem características que se relacionam com cada período histórico e que só podem ser compreendidas como parte do conjunto de tendências de uma época. E finalmente, enquanto trabalho realizado pelo artista, a obra de arte é uma configuração de elementos que caracterizam sua especificidade a partir de certos princípios de formatividade, também enunciados histórica e culturalmente.

Refletindo sobre as características do fenômeno artístico, os autores das últimas décadas alargaram as fronteiras da aprendizagem da Arte dentro da instituição escolar, incorporando à atividade de produção artística da criança, o exercício da reflexão sobre a Arte dentro de seu contexto histórico e a leitura da imagem como meio para o desenvolvimento da apreciação estética.

Vê-se como o pensamento contemporâneo responde claramente à necessidade de precisar um arcabouço conceitual que possa fundamentar e nortear a prática pedagógica do professor de Arte de uma maneira "nunca dantes navegada", no caminho de formular os contornos da disciplina Artes no currículo escolar. A proposta triangular define o objeto da área, ponto de partida estrutural para a consequente enunciação de objetivos, conteúdos e procedimentos metodológicos a serem articulados pelo professor, tendo em vista - e isto é muito importante - as condições particulares em que se inscreve sua ação: características sócio-culturais da sua escola, faixa etária e nível de desenvolvimento dos seus alunos. Com base na proposta triangular, o professor de arte pode compreender que existem conteúdos a serem trabalhados: no sentido de propiciar a seus alunos um conhecimento de Arte, advindo não apenas de sua atividade criadora, ou seja, realizando formas artísticas, mas também de sua aprendizagem estética. Esta última, desenvolvida através da apreciação de obras de arte, vistas dentro da história da cultura, da história das formas artísticas e da história pessoal dos artistas, bem como da leitura das mais diversas imagens do cotidiano.

Vejo nesta formulação uma dupla possibilidade. A primeira é a de alicerçar a significação do fazer artístico na vida das crianças, a segunda é a de encaminhar o professor de arte na descoberta do sentido e da função do seu próprio trabalho.

Há mais de 20 anos, nos EUA, E.B.Feldman apontava a falta de sentido da atividade artística para as crianças como a principal responsável pela ineficácia dos planejamentos escolares nesta área. "Tornar-se humano através da Arte", propunha este autor, através de um currículo onde as crianças poderiam estudar obras de arte como fonte de conhecimento sobre a vida do ser humano nas diferentes culturas; ao mesmo tempo, poderiam compreender e apreciar as manifestações artísticas nas suas características específicas. Confessadamente influenciado por J. Dewey, Feldman buscava levar às crianças a significação da Arte como parte fundamental da vida humana. Sua visão é bastante clara e nos tira dos incômodos e imprecisos contornos da Livre Expressão. A questão é: como esta idéia pode ganhar vida na prática cotidiana dos professores e dos alunos?

A proposta triangular não é uma metodologia. Ela estrutura o conhecimento de nossa área em bases sólidas, estabelecendo os eixos fundantes da aprendizagem da Arte. Mais do que isso, suscita questões metodológicas instigantes, que levam os professores a enfrentarem a necessidade de rever seu trabalho, buscando novos caminhos para o processo de ensino e aprendizagem artística.

Focalizando questões relativas à educação estética, podemos dizer que genericamente, antes de mais nada, o professor enfrenta duas classes de perguntas. A primeira classe envolve as questões que dizem respeito ao conceito de experiência estética e a segunda, as questões relacionadas com o desenvolvimento cognitivo dos alunos. Em síntese: o que quer dizer, para uma criança na faixa etária X, conhecer Arte através da apreciação da obra artística? ou da leitura da imagem? ou da apreciação de formas da natureza e de objetos variados produzidos pela cultura?

Observando algumas práticas desenvolvidas no sentido de responder a estas questões, podemos dizer que muitos professores dispostos a trabalhar com a proposta triangular têm oscilado entre um extremo, que chamaríamos de reducionismo narrativo, e outro, o do reducionismo formalista. No primeiro caso, o fato visual é reduzido à descrição de figuras e as crianças são levadas a narrar o que vêem. Então o que se perde são as qualidades visuais específicas da obra de arte: narrando o que vê a criança pode aprender muitas coisas, mas não necessariamente estará tendo a possibilidade de estabelecer um contato com a natureza do objeto artístico. Deste ponto de vista, tanto faz narrar uma foto jornalística, figuras de um calendário qualquer ou uma obra de Portinari.

No segundo caso, na tentativa de ensinar os elementos da forma visual, os professores levam as crianças a observar formas, linhas, cores, texturas que compõem uma obra. Então, a obra se fragmenta nos seus elementos compositivos e o que se perde, em geral, é a experiência significativa do todo.

Como escapar destas duas tendências reducionistas?

Outra pergunta: como escapar da tendência "vestir a camisa"? Explicando melhor: "Antes eu vestia a camisa da livre expressão e agora tenho que vestir a camisa da proposta triangular"; este seria o subtexto que estaria tirando o sono de muitos professores hoje em dia. Na experiência dos alunos, isto corresponderia, grosso modo, à seguinte situação: "bom, antes, fazer arte era juntar copinhos de iogurte e caixas de ovos fazendo uma "criatividades"; agora, fazer arte é olhar bem uma obra da Tarsila e depois fazer alguma coisa inspirada nesta obra". Nesse caso, copinhos de iogurte ou "releitura" se substituem igualmente, na "aplicação mecânica" de uma suposta tendência em voga.

Como transformar o momento de apreciação estética numa situação de fluência vital em que professor e alunos compartilham a maravilha, o jogo, a descoberta e a atualização de valores humanos fundamentais? Ou seja, como fazer a obra de arte tornar-se presente para a criança, de modo que ela construa um universo ressonante de significações?

Como propiciar à criança uma experiência de encontro simbólico com o universo da Arte e não apenas um encadeamento de dados informativos sobre um artista, uma época ou elementos formais?

Em que idade é possível dizer que uma criança "aprecia" Arte? O que quer dizer "apreciar" arte em cada faixa etária? Que relação isto tem com o conceito de "apreciar" para o adulto?

Como descobrir as qualidades perceptivas características de cada idade, para a partir delas edificar uma proposta de apreciação?

Existem ainda outras infinitas questões, mas acredito na importância de observar a fecundidade destas perguntas e não as dificuldades para respondê-las. Penso na riqueza cognitiva deste momento da história do ensino da Arte no Brasil. Por exemplo, em vez de ficarmos "preocupados" com a diversidade cultural do nosso país, podemos ficar ocupados em construir a consciência dessa diversidade, entendendo essa ação como uma oportunidade. Quem sabe estudando, descobrindo a variedade de nossos artistas, junto com nossos alunos, podemos vivificar nossas raízes, sublinhando nossa identidade. Quem sabe esse é justamente o momento de edificar esta consciência, através do conhecimento da riqueza de nossa diversidade artística.

O ponto de partida somos nós mesmos e nossa capacidade de perguntar, com base numa certeza, dentro de nós, da função e do que almejamos com nosso trabalho. Da experiência de integridade que conhecemos em nós, quando estamos em contato vivo com a Arte. Poderemos, quem sabe, revisitar o conceito de beleza, empoeirado e esquecido na gaveta das idéias fora de moda, se pudermos apreciar, por exemplo, as palavras desse Canto Noturno dos índios Navaho* :
Que eu possa andar na trilha marcada com pólen
Que eu possa andar com gafanhotos nos meus pés
Que eu possa andar com orvalho nos meus pés
Que eu possa andar com beleza à minha frente
Que eu possa andar com beleza atrás de mim
Que eu possa andar com beleza acima de mim
Que eu possa andar com beleza abaixo de mim
Que eu possa andar com beleza à minha volta toda
Que eu possa andar com idade avançada vaguando numa trilha de beleza, com alegria.
Tudo acaba em beleza
Tudo acaba em beleza.

O que estes índios Navaho conhecem tão bem que nós esquecemos?

Paulo Freire falou uma vez da boniteza de ensinar. E certamente, nossa história do ensino da arte está marcada por pessoas que criaram essa boniteza, algumas delas apoiadas no bastão de comando que empunham pela sua capacidade única de compreender, sintetizar e difundir idéias fundamentais para o desenvolvimento de nossa área. Noêmia Varela, à frente das Escolinhas de Arte do Brasil e Ana Mae Barbosa, são nossas referências, conduzindo nossa história, abrindo perspectivas para todos nós. A elas nosso agradecimento pelo seu trabalho exemplar, que repercute em nós e nos faz perguntar: qual é a nossa função e o nosso lugar dentro desta história?

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